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  • Clarissa Cavalcanti

CRITICA LITERÁRIA - QUASE MEMÓRIA


O livro indicado por Ruy Castro, figura importante no cenário literário brasileiro e também do universo jornalístico, é de fato uma caixinha de surpresas, repleta de histórias de um personagem marcante porquê real. Ruy Castro é conhecido pelo gênero literário que o consagrou, a biografia, e creio ser por essa razão que o livro Quase Memória, de Carlos Heitor Cony foi sua sugestão para a leitura do mês de setembro para os associados da TAG - experiências literárias. A obra é uma ode do autor ao seu pai, Ernesto Cony, na qual Carlos Heitor resgata suas memórias para compor e apresentar-nos a figura ímpar que foi seu pai.

Carlos Heitor Cony é jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. Hoje em dia, aos 91 anos, escreve semanalmente para o jornal A Folha de São Paulo e é comentarista da Rádio CBN. Possui 17 romances publicados, pelos quais recebeu quatro Jabutis, duas vezes o o Prêmio Manuel António Almeida, o Prêmio Machado de Assis, dentre outros.

Mesmo contendo elementos que poderiam caracterizar a obra como uma biografia, em Quase Memória o autor foge dos limites que marcam os gêneros literários e cria uma mescla entre reportagem, crônica e romance. Na primeira parte de seu livro, chamada Teoria Geral do Quase, ele qualifica sua obra como um “quase romance” pois não se preocupa em dizer o que é ou não ficção, mas impulsiona os leitores a imaginar cada uma das situações extraordinária que nos narra:

"Além da linguagem, os personagens reais e irreais se misturam, improvavelmente, e, para piorar, alguns deles com os próprios nomes do registro civil. Uns e outros são fictícios. Repetindo o o anti-herói da história, não existem coincidências, logo, as semelhanças, por serem coincidências, também não existem”

A vontade de escrever o livro surge após vinte anos da publicação de seu romance Pilatos, a partir de um sonho que teve com o seu pai: nele, recebia um embrulho em um hotel no Rio de Janeiro. Ao ter o pacote em mãos, percebe à partir de seus detalhes (como o cheiro, a forma do laço, a cor, o nó) que quem enviou foi seu pai, falecido há 10 anos. A partir dessa constatação, abre-se um mundo de memórias, dúvidas e sentimentos em que o narrador-personagem mergulha para compreender como o seu pai foi capaz de realizar essa façanha, mais uma das várias que realizou durante sua vida.

“Era um dos seus lemas. Todas as noites, antes de dormir, se havia alguém por perto, ou se estivesse sozinho, sempre dizia em voz baixa, metade compromisso, metade como prece: amanhã farei grandes coisas!”

As lembranças da sua infância no Rio de Janeiro no começo do século XX nos dá um panorama da sua vida perpassada sempre pela imagem do pai: desde seu ingresso no seminário à sua decisão se seguir a carreira dele, o jornalismo; do contexto de ditadura militar e os enfrentamentos da carreira jornalística no período. A passagem do tempo de sua vida é retomada, mas agora sob o ritmo que seu pai estabelecia, com a entrega do embrulho o narrador deixa de ser pessoa e torna-se memória. Tanto é assim que as 269 páginas se passam em um período muito curto de tempo, menos de 24 horas, nas quais podemos acompanhar a percepção de cada detalhe que suscita histórias e compreensões da personalidade de seu pai. Conhecemos essa figura emblemática pelas beiradas, e mergulhamos profundamente em seu ser quando a compreendemos a partir do olhar de amor e admiração de um filho que cresceu junto com os dilemas e os processos que envolvem as relações entre pais e filhos.

A confiança em escrever um livro em homanagem ao seu pai parece ser uma grande despedida não realizada. Forçado a resgatar tudo o que havia em seu coração para entender o sentido do embrulho, o narrador encara mágoas, críticas, fascínios, amores e apegos que carrega dentro de si para se perdoar e perdoar seu pai e entende-lo como pessoa. Perpassar anos de vidas em algumas horas e compreender o impacto que seu pai teve em sua vida é uma explosão de amor, o ato final de reconciliação com tudo o que foi e com o que não foi.

A obra mexe muito por nos fazer questionar o lugar dessas relações em nossas próprias vidas. Talvez não sejamos capazes de escrever uma obra dessa magnitude em homenagem àqueles que são nosso referencial masculino primeiro nessa existência, mas podemos (e devemos) estar sempre buscando esse processo de amor e reconciliação em nossos corações, devemos honrar e aceitar a humanidade que perpassa ser pai e, também, ser filho. O amor que Cony sente em toda sua vida ter vindo à tona em algumas horas, tocando-o profundamente, me faz pensar que esse amor e emoção devem ser lembrados e vividos sempre, pois nosso adeus não precisará ser feito em forma de um livro, no fim das contas, mas vai ter se concretizado nas minúcias do dia-a-dia.

Links para conhecer melhor a obra e vida de Carlor Heitor Cony:

https://www.youtube.com/watch?v=VvyX35rD2eU

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