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Ana Luiza Lemos

Cannabis: Regulamentação, negócio e desenvolvimento.


Para muitos, a discussão sobre a regulamentação da cannabis ou de outras substâncias parece temática distante e pouco impactante em suas próprias vidas. Para outros, a singela possibilidade de mudança na atual política é suficiente para gerar temor e um consequente bloqueio para discussões - que podem ser muito ricas - sobre quais as possíveis formas de lidarmos, como sociedade, com a questão das drogas. A cannabis, atualmente, é a planta proibida cujas restrições são visivelmente mais prejudiciais do que a própria substância. Esse fator, assim como a impossibilidade de morte decorrente de overdose de maconha e o significativo potencial terapêutico dela, tem resultado em questionamentos e mudanças mundias em relação à forma de regulamentá-la.

O paradigma proibicionista foi estabelecido há pouco tempo. A ideia de uma regra única (proibido vender ou consumir) que se aplique a todas as pessoas, substâncias e contextos só ganhou alguma credibilidade nos últimos 100 anos. Essa crença não foi/é sustentada por evidências científicas, experiências pessoais ou clamor populacional. Esse paradigma, assim como todo o aparato de guerra que o mantém, foi construído por interesses específicos e baseado em um discurso. Tal discurso faz alusão à ideia de que ao reduzir a oferta, a procura também diminuirá. Ou seja, ao impedir a produção e o comércio de substâncias, a vontade de usar das pessoas diminuiria e isso seria positivo porque as drogas resultam em violência e em problemas de saúde. Para sustentar essa tese, foi criada a Guerra às Drogas, que mata milhares de pessoas até os dias atuais em diferentes lugares do mundo e traz mais violência do que qualquer substância em si. O "perigo"das drogas é argumento que justifica a interferência na vida de muitas pessoas de maneira indireta e direta.

Entretanto, é preciso compreender que a proibição da maconha não impede somente o acesso de pessoas a uma planta com o potencial de alterar a percepção. A proibição da cannabis afeta distintos âmbitos da vida social e sua regulamentação pode trazer significativos benefícios para todos, mesmo para os que não se imaginam relacionados com a temática. Por isso, é importante que toda a sociedade se aproprie da discussão dos modelos regulativos para a cannabis, para, então, cocriarmos uma política mais próxima possível da necessidade das pessoas afetadas por ela.

A cannabis, assim como outras substâncias com efeitos psicoativos, se relaciona com a humanidade há milênios, precedendo o assentamento das comunidades nômades. Tanto tempo de experimentação resultou em uma ampla gama de possibilidades para aproveitar o potencial dessa planta decisiva para a evolução dos humanos. A semente é rica fonte de alimento ou de combustível. As fibras, dentre inúmeros produtos resultantes, produzem também tecidos. O potencial industrial de apenas uma plantinha, de fácil cultivo e acesso, certamente interferiria no desenvolvimento de indústrias como a do plástico, do algodão ou do petróleo.

O uso das propriedades terapêuticas da cannabis está descrito na ciência ocidental desde 1830 pelo pesquisador médico irlandês W. B. O’Shaughnessy’s. O acesso a essas medicinas era relativamente fácil, barato e autônomo. Essas são características contrárias ao paradigma biomédico, sustentado pela indústria farmacêutica, que busca o controle do cuidado, dos corpos e da psique humana. A necessidade urgente de pessoas que não encontram alívio para suas enfermidades de outra forma que não com a cannabis foi importante força para começar a resgatar essa longa história que foi literalmente apagada e substituída por falsas informações.

Não pretendo, nesse artigo, discutir as implicações éticas ou existenciais da obtenção de prazer a partir de substâncias denominadas drogas. Todavia, destaco a condenação do uso social, chamado por muitos de recreativo, como ferramenta institucional no Brasil para o controle de populações específicas. Os sistemas prisional, manicomial e socioeducativo estão atualmente passando por momentos de crise, já que a falta de efetividade é evidente nesses contextos. Contribui para esse caos o fato de estarem sobrecarregados de indivíduos com problemas com a política de drogas, ainda que não necessariamente com a substância em si. Vale ressaltar que as pessoas que têm problemas com essas instituições são de um recorte sociocultural e racial muito específico. Desde a última mudança na Lei de Drogas em 2006, o encarceramento em razão da lei de drogas aumentou cerca de 480%. Isso significa que atualmente 1 em cada 3 presos no Brasil respondem a lei 11.343. Quando falamos da população carcerária feminina, os índices surpreendem ainda mais. Quase 64% das mulheres presas hoje em dia são por crimes relacionados ao tráfico de drogas.

Os resultados da proibição evidenciam que é necessária uma nova forma de lidar com as drogas, uma vez que esta não cumpriu seus objetivos. Na verdade, a proibição garantiu que os processos de produção, distribuição e comércio fossem encobertos e pouco controlados. Isso resulta em produtos de má qualidade, em desvio de dinheiro e corrupção e em falta de informação da população sobre o que consome. Embora seja clara a necessidade de mudanças urgentes, a nova forma de organização da política de drogas não está dada. Ao contrário, ela começa a ser construída e possui infinitas possibilidades.

A legalização não precisa ser uma liberação geral sem limites. Espera-se regulamentar a cannabis para que limites sejam estabelecidos. Ela deve surgir de debates que ponderem as dificuldades presentes em cada âmbito no qual as drogas estão envolvidas : saúde, justiça, educação, segurança pública, alimentação, econômica. Contribuições transversais e multidisciplinares são essenciais para abarcar a complexidade dessa questão.

Diante do atual contexto de crise, a regulamentação da cannabis poderia ser uma interessante alternativa para solução de problemas econômicos, sociais e estruturais que estão presentes no contexto brasileiro. Quem controlaria a produção, distribuição e venda? Empresas, o Estado, cooperativas civis? Quais as restrições para consumo? Como seria distribuído o dinheiro arrecadado a partir de tal atividade? Quais ferramentas serão utilizadas para reduzir os possíveis riscos associados ao consumo de substâncias? Como incluir a população que está atualmente envolvido no varejo de drogas?

Essas são algumas questões iniciais que já demonstram como a questão é profunda e, portanto, necessita da contribuição de pessoas das mais diversas áreas. Por isso, é importante a apropriação dessa temática como significativa pauta para qualquer cidadão brasileiro, uma vez que esse é o passo inicial para a construção de uma política que , de fato, seja elaborada baseada na experiência dos que a vivenciam.

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